#CONTO: OBLITERAÇÃO
Sinopse: Após um misterioso e aterrorizante vírus destruir a sociedade que conhecia, Aruna aprende que sobreviver não é questão de sorte. E que nem tudo é o que parece ser.

aviso: este conto contém descrição de violência e sangue.
Nada poderia ter realmente preparado Aruna para aquilo, absolutamente nada. De fato, se alguém tivesse dito com todas as letras que o mundo que ela conhecia chegaria ao fim, Aruna provavelmente iria gargalhar pelo tamanho absurdo. Mas ali estava ela, correndo em meio às ruínas do que um dia foi uma galeria comercial, procurando por remédios e comida. Tinha vontade de sentar nos escombros e chorar de soluçar, implorar ao universo para ter piedade e acordá-la daquele pesadelo. Só que era real, assustadoramente real.
Em meio aos escombros do que um dia foi uma cidade cheia de vida, era preciso ignorar os corpos e objetos que indicavam a possibilidade de alguém ter tentado sobreviver à nova realidade. Nesses momentos sentia falta do passado onde o seu maior problema era o burnout por conta do caos que era equilibrar faculdade, estágio e vida social. Era necessário desviar os olhos, respirar fundo e ignorar para seguir adiante.
A região que antes era tão conhecida por suas florestas e praias, agora era coberta por areia, escondendo o asfalto e a terra que um dia foi marrom cheio de vida, formando dunas que terminam apenas ao chegar na água da baía. E o cinza dos prédios sendo coberto pelo verde da vegetação que conseguiu resistir à destruição e ao clima seco, o sinal claro de que a natureza estava tomando conta do que lhe pertencia. A única coisa que tirava um pouco o peso no peito de Aruna, era saber que não estava completamente sozinha.
— Aruna, achou algo aí? — Pedro entrou no que antes deveria ser uma farmácia, uma enorme mochila nas costas e um bastão numa das mãos. — Consegui encontrar comida, bastante coisa que ainda dá pra consumir.
Aruna fechou a mochila que carregava e virou-se para encarar o rapaz. — Tudo certo por aqui. Melhor irmos antes que comece a anoitecer.
Os dois saíram dos escombros em silêncio. Nunca era bom manter conversa quando se está em um ambiente daquele nível, o risco de atrair problema com o barulho ou não ouvir os sinais de perigo eram grandes demais. E era necessário andar o mais depressa possível pois, com o fim da energia elétrica, eram alvos fáceis na escuridão das ruínas do que antes era Niterói.
Mesmo usando as lanternas recarregáveis por energia solar, uma das regras que criaram era nunca usar desnecessariamente algo que possa precisar depois. Na realidade que se encontravam, a probabilidade de algo dar errado e parar numa situação de risco era grande.
O sol já estava começando a se pôr quando os dois chegaram no abrigo, localizado próximo da praia, numa casa que parecia mais uma fortaleza e que ficava alguns metros de distância da Paróquia de São Judas Tadeu. Distante do que uma vez foi um centro movimentado, mas próximo o suficiente se soubesse quais atalhos pegar. O portão eletrônico não funcionava mais, porém ainda existia uma entrada secreta pela lateral, disfarçada como parte do muro.
Pedro e Aruna eram os únicos que tinham a certeza de terem imunidade a qualquer que fosse o vírus, mas não queriam correr riscos de contaminar Cassandra ou Marisol. Então usavam o pequeno pátio na entrada como ponto de descontaminação, onde tomavam banho e limpavam tudo que traziam de fora. Aruna suspirou arrastado, os jatos da água salgada misturada com sabão caseiro não a deixava apreensiva como antes, porém, o medo de não estar limpa o suficiente era impossível de dissipar nas primeiras horas após uma expedição.
— Aruna! Pedro! Conseguiram alguma coisa que pedi? — Cassandra perguntou ansiosa assim que viu os dois contornando a pequena horta no jardim.
Pedro sorriu animado, erguendo a enorme caixa que carregava. — Você estava certa sobre aquela galeria. Achei as coisas para consertar o rádio e pra continuar ajeitando a nossa horta.
— E eu achei bastante remédio e material para emergência. — Aruna acrescentou, deixando a caixa que carregava na mesa para então deitar no sofá da sala. Estava completamente exausta.
— Isso é ótimo, melhor precaver mesmo. — Cassandra meneou a cabeça, dando três tapinhas no ombro da amiga. — Agora vou trocar as baterias do rádio e ver o que mais precisa ser consertado.
— Deixa que eu te ajudo, Cass.
Ainda carregando a enorme caixa, Pedro seguiu os passos da outra garota após se despedir de Aruna com uma careta.
Todos ali carregavam uma história, situações que eram muitas vezes o motivo dos pesadelos que tinham ao tentar dormir. Lidando com o trauma de perder não somente tudo que conhecia como vida, mas, principalmente, ser testemunha da morte de tantas pessoas queridas. A culpa por estar ainda lutando para sobreviver enquanto outros sucumbiram ao fim. Relacionamentos eram complicados, principalmente no fim do mundo, mas ao menos ainda era possível criar um pouco de amor por ali.
— Detesto quando você sai sem mim. — Marisol declarou assim que entrou na sala e avistou Aruna, sentando no sofá para poder abraçá-la. — Precisamos achar uma forma de nos comunicarmos enquanto está lá fora.
Depositando beijos no rosto da namorada, Aruna revirou os olhos antes de suspirar arrastado. — Eu sei, amor… Mas todo mundo tem uma função aqui, certo? Eu quero ajudar no que posso.
Aruna entendia a preocupação de Marisol, o medo de algo acontecer e não poder se despedir era constante, ainda mais com a lembrança tão forte de quando a sociedade caiu.
As primeiras notícias de um vírus tomando conta do planeta apareceram logo de manhã, a informação sendo ignorada por conta dos compromissos do cotidiano corrido. Tudo mudou em questão de dias e aconteceu muito rápido. Com o vírus, veio a guerra, uma reação gananciosa e que resultou na destruição de tudo.
Um mundo cheio de tecnologia e riquezas sucumbiu ao caos, e, antes de perder a conexão da internet, a última notícia foi que muitos países haviam sumido do mapa.
Aruna não se orgulhava em dizer que negou ajudar alguém por medo de morrer no lugar, pois foi assim que perdeu a própria família e outras pessoas queridas durante os dias da ruína. Nem Marisol, com todo o aprendizado em psicologia, parecia conseguir manter a própria sanidade às vezes.
“A bateria que alimenta a rádio está dando problemas, então essa será a minha última transmissão. Não sei se tem alguém ouvindo, mas se tiver, não desista. Sei que a sociedade que conhecia não existe mais, os governos caíram, muita gente morreu ou se transformou. Droga, é difícil ser positiva nessa merda. Espero que a escuridão não dure para sempre… Aqui é Lucas, as gravações vão ficar como registro-”
A estática do aparelho de som era desconfortante em meio ao silêncio da pequena sala, o último contato que conseguiram ter em meses. Se é que poderiam chamar de contato, já que não era possível se comunicar com a pessoa e nem mesmo sabiam exatamente onde ficava a rádio. Foram apenas testemunhas de outro sobrevivente.
Fingindo que olhava o jardim pela janela, Pedro chorava ao ponto do corpo tremer, as mãos indo ao rosto para abafar qualquer barulho. Cassandra levantou da cadeira que estava e foi até o rapaz, abraçando-o numa tentativa de consolar a dor que o outro sentia. Aruna respirou fundo, tentando controlar os próprios sentimentos, a pior coisa naquele tipo de situação era se colocar no lugar de quem se foi.
— Acho que eu teria mais esperanças se essa merda toda fosse uma aniquilação alienígena. — Marisol bufou impaciente, se jogando no sofá ao lado de Aruna e esfregando as mãos no rosto em frustração.
Sobreviver naquela nova realidade nunca foi sobre sorte. Ao menos para Aruna, a palavra sorte foi riscada por completo do vocabulário. Porém, naquele momento, correndo em meio aos escombros de um prédio comercial, a jovem só conseguia desejar um milagre. Aruna não percebeu os sinais, a mente um pouco inquieta por conta da discussão que teve com Marisol antes de sair para a expedição, pensando que encontrar os malditos pagers poderia ser uma boa forma de iniciar um pedido de desculpas.
O que seria uma procura tranquila e silenciosa, foi bruscamente interrompida quando Aruna esbarrou em um pote de pilhas descartadas. Os grunhidos pareciam vir de todas as direções, a loja de departamento provavelmente foi usada por um grupo de pessoas tentando sobreviver. Com uma sacola de pagers na mão e a mochila nas costas, Aruna correu o mais rápido que conseguia, pulando e desviando dos escombros para alcançar a saída e trancar a porta do prédio. Sair da loja não foi difícil, mas seguir pelos corredores era um pesadelo se tornando realidade.
Uma dúzia logo se tornou mais. Apesar de alguns terem ferimentos, não era nada que impedisse os infectados de efetuar a perseguição. Aruna xingou por baixo da respiração, olhando ao redor e tentando pensar numa forma de ao menos despistar antes que seu erro pudesse afetar Pedro que estava no outro andar. Mas bastou essa pequena distração para um infectado, preso debaixo do que antes era um quiosque, agarrar o seu tornozelo e puxá-la para o chão.
Não teve tempo nem de sentir a dor da queda, Aruna só tinha um pensamento: se livrar da mão em seu tornozelo e voltar a correr. Ela era imune à doença, mas isso não a poupava do risco de ser comida viva. Teve que chutar duas vezes a cabeça que tentava lhe morder, ao mesmo tempo que apoiava os braços no chão para tentar puxar o próprio corpo para trás para se libertar. Quando finalmente conseguiu ficar de pé, percebeu que as silhuetas se tornaram rostos cheios de veias e bocas espumantes.
Porém, Aruna nunca foi uma pessoa de desistir, enfiando os pagers na mochila, mudou a rota no mesmo instante e voltou a correr. Foi até a escada rolante que estava quebrada, pulando alguns degraus na pressa antes de apoiar o corpo no corrimão e pular para o outro lado, encaixando as pontas do tênis nos pequenos centímetros da beirada de concreto. Sem a mesma destreza, os infectados se embolaram na escada, caindo no enorme buraco entre os degraus até o andar abaixo, um por cima do outro.
Olhando uma última vez a bagunça que fizera, caminhou ainda pela beirada para retornar ao andar que estava. Tentando recuperar um pouco o fôlego, Aruna voltou a correr, dessa vez em direção às escadas que davam para o andar de cima. Estava na metade do caminho quando esbarrou com Pedro, o olhar aflito conferindo se Aruna estava machucada, as mãos segurando firme o bastão sujo de sangue.
— Tudo bem? — os dois perguntaram ao mesmo tempo, a resposta sendo uma careta e menear de cabeça.
— Infectados na escada rolante, estavam na loja de departamentos. Prédio tá comprometido. — Aruna resumiu, puxando o amigo pelo braço para poderem sair daquele lugar.
— O barulho foi você, então? Vamos embora.
Os dois então correram para o lado oposto, na direção do estacionamento, por onde entraram e sabiam que existiam escadas de emergência. Mas, quando chegaram no estacionamento, encontraram um pequeno grupo rodeando uma das saídas. Aruna sinalizou silenciosamente para seguirem adiante, olhos atentos caso eles precisassem correr, descartando a primeira escada e contornando os carros abandonados para seguir até o outro lado.
Com Aruna andando na frente, Pedro conseguiu olhar melhor a jovem e sentiu como se o estômago tivesse dado um nó. O casaco tinha um rasgo enorme no ombro esquerdo, a camisa branca tomando um tom vermelho. Aruna estava sangrando. E a única coisa que atraía os infectados além de barulho era sangue fresco. Como num clique, o grupo virou em direção deles, Pedro não esperou por outro sinal para empurrar Aruna para que começasse a correr outra vez.
— Aruna, você não tá sentindo o corte no ombro? — Pedro ofegou nervoso.
A jovem xingou exasperada, retornando a correr ao finalmente chegarem no asfalto, uma careta tomando conta do rosto. — Droga, tô cheia de adrenalina, pensei que fosse suor.
Olhando para trás ao ouvir grunhidos, Pedro apertou o passo. — Meu bastão não vai ser suficiente. A gente vai ter que parar no inferninho.
— Desculpa, eu deveria ter tomado mais cuidado. — Aruna resmungou com a voz embargada.
— Só me peça desculpas quando estivermos em casa.
Nenhum dos dois gostava daquela opção, o inferninho era o local que haviam prometido nunca falar sobre, principalmente o que aconteceu lá numa das primeiras saídas da dupla. A primeira vez que tiveram que matar. Aruna passou meia hora vomitando e tremendo, o choque da situação afetando-a duramente, mas, infelizmente, eles não tinham muita opção além de matar ou morrer. Pedro se ofereceu para cuidar dos corpos, sabendo que precisariam daquela loja clandestina de armas em algum momento.
Entrar no inferninho era reviver todas as memórias ruins, Aruna mordia com força o lábio para conter a vontade de repetir incansavelmente o pedido de desculpas. Pedro pegou o kit de primeiros-socorros e esperou ela descartar o casaco e a camisa, para então poder ver a gravidade da ferida e fazer o curativo. Ficaram em silêncio, ambos tentando controlar a tempestade de emoções e se preparar mentalmente para o retorno.
— Acho que você deveria levar a tal catana. — Pedro disse, entregando o objeto nas mãos dela. — E guarde bem a sua mochila, ok? Eu vou pegar um facão e um revólver com silenciador.
Aruna sentiu o estômago embrulhar. — Será que vamos precisar?
Pedro se preparou para sair, o bastão preso na mochila, o facão na cintura e o revólver em punho. — Escuta o barulho lá fora! Eu quero chegar em casa antes do jantar e não virar comida.
A sensação de déjà vu tomando conta, Aruna queria sentar e chorar, mas sabia que seria estupidez desperdiçar ainda mais tempo ali. — Eu sei… É só que-
Pedro a interrompeu, uma expressão séria no rosto. — Engole o choro e vamos pra casa!
Sabia que o amigo apenas queria ajudar, que ela precisava manter o foco, mas Aruna não conseguiu conter a reação e se encolher com o tom seco e autoritário de Pedro. Logo iria anoitecer e não queria ser o motivo de mais um problema, então meneou a cabeça e segurou firme a catana. Respirou fundo, esperando Pedro abrir a passagem para ela ir na frente como havia treinado várias vezes. Iria focar em chegar, depois se permitiria beber e chorar nos braços da namorada até dormir. Era um bom plano.
— Cassandra! Marisol!
A voz exasperada de Pedro quebrou a quietude da casa, chamando atenção das duas no jardim. Sendo meio carregada pelo rapaz estava uma desacordada Aruna, completamente suja de sangue. Pedro não estava muito diferente, mas Aruna parecia ter passado pelo inferno e voltado. Depositando a amiga numa das espreguiçadeiras que ficavam na varanda, Pedro então sentou no chão encarando as mãos trêmulas e sujas de sangue.
Marisol deixou um soluço escapar, se aproximando para cuidar de Aruna. — O que diabos aconteceu lá fora?
— A gente teve problemas, quando demos de cara com um grupo de infectados próximos da Mariz e Barros, — Pedro fechou os olhos para conter as lágrimas, mas a voz embargou pesadamente. — Ela simplesmente se meteu na minha frente quando ficou difícil de matar todos.
— Acho que não tem jeito, Sol, vai ter que cauterizar. — Cassandra resmungou, depositando as duas caixas de emergência na mesinha, observando Marisol conter primeiro o sangramento das mordidas.
Os gritos abafados de Aruna cessaram apenas quando ela desmaiou por conta do choque enquanto Marisol cauterizava a décima mordida. As cicatrizes não iriam ficar bonitas, principalmente as que estavam nos ombros e costas, mas Marisol suspirou em alívio quando finalizou na contagem de vinte e três. Com ajuda de Cassandra, Pedro terminou de se limpar e cuidar dos próprios ferimentos, ainda muito abalado com tudo demorou para aceitar que o melhor naquele momento era descansar.
Levou quase dois dias para Aruna acordar, e só então Marisol se permitiu chorar em alívio. E, por conta do ocorrido, as expedições foram suspensas por tempo indeterminado. O grupo entrou em um consenso de que Pedro e Aruna estavam se arriscando demais para coisas supérfluas, além de acumular todo o fardo de ter que lidar com o estresse e violência. Apesar de ambos negarem fortemente, acabaram finalmente contando tudo que passaram para trazer as coisas e voltar para casa.
— Gente, Cassandra tá chamando! — Pedro gritou ansioso, correndo pelos corredores da casa para convocar as outras duas jovens. — O rádio tá funcionando!
Não demorou para os quatro se reunirem na pequena sala de rádio, encontrando Cassandra com fones de ouvido e um semblante sério demais. Ninguém ousou falar nada, já sabendo que o melhor era esperar uma explicação do que estava acontecendo. Após mexer em diversos botões e soltar vários suspiros, Cassandra colocou a caixa de som para funcionar.
“Aqui é a Força Nacional, estamos em busca de sobreviventes no distrito de Niterói! O perímetro da Estação das Barcas foi restabelecido e está sendo protegido pelo exército brasileiro, sobreviventes devem encaminhar-se para o local. O resgate irá durar por duas semanas a partir de hoje, venham durante o dia. Repetindo, aqui é a Força Nacional, estamos em busca de sobreviventes no distrito de Niterói-”
Cassandra desligou o rádio e virou-se na cadeira para poder encarar os amigos. — Dois anos de atraso, mas parece ser real.
— Eles disseram algo sobre ter encontrado uma cura? — Marisol questionou em certo desespero.
Pedro limpou a garganta, resmungando num tom triste. — Nesse nível de contaminação e destruição? Acho que não tem.
Aruna interrompeu a lamentação batendo palmas. — Certo, voltando ao que importa: o que iremos fazer?
Os quatro se entreolharam, Marisol foi a única a expor os pensamentos e sentimentos sem precisar refletir sobre. — É o que a gente sempre quis, né? Mas aqui se tornou nosso lar, tenho medo do que pode acontecer lá fora.
Medo. Era uma descrição perfeita para o que todos estavam sentindo naquele momento. Dizer adeus ao local que passaram tanto tempo construindo um lar não era nada fácil, escolher o que levar, sabendo que nunca mais voltariam ali, era ainda mais difícil. O coração doía, principalmente ao perceberem que todos os quatro cogitaram criar uma vida ali. Contudo, não podiam negar a vontade de viver em sociedade novamente, mesmo que uma em reconstrução.
Cada um preparou uma mochila com alguns pequenos pertences que pudesse ser levado, além das bolsas com mantimentos que seriam descartadas ao longo do caminho. Apesar de cada um estar segurando um tipo de arma para proteção, a rota que Pedro e Aruna escolheram cuidadosamente foi percorrida sem problemas. Pararam somente para comer e descansar, tomando cuidado para não se distanciar um do outro. O silêncio sendo sempre a melhor tática para seguir em meio às dunas cobrindo a cidade.
O silêncio foi interrompido somente ao chegarem na área da Estação das Barcas, provavelmente por conta de todo o barulho que acabava atraindo os infectados. Apressaram os passos, tentando contornar a comoção e evitar qualquer tipo de conflito. No entanto, era uma tarefa difícil de ser feita já que para chegar ao portão de entrada, era preciso passar por algumas barreiras de concreto e as dunas de areia.
— Certo, como treinamos antes de vir para cá. Assumam suas posições.
Pedro declarou em seu tom grave, o grupo automaticamente obedecendo. Aruna sentia as mãos suando apesar do frio, com a catana em punho, acertava todo infectado que ousava olhar na direção deles. Não demorou muito para os soldados, que estavam na defesa das barricadas, notarem o grupo se aproximando e começarem a ajudar.
Aruna podia sentir a energia dos amigos modificando, ficando mais animados a cada novo passo, até sua namorada parecia vibrar em alívio. Quando passaram pela primeira etapa, a maioria decidiu deixar voluntariamente as armas com os soldados, aliviados em não precisar carregar mais aquele peso. Apesar da ajuda dos soldados, o clima ainda era muito tenso. Marisol abraçou Aruna, o grupo todo se aproximando mais e olhando ao redor de forma apreensiva. Passaram por mais duas etapas, os soldados os cumprimentando brevemente, até que finalmente chegaram ao portão de entrada.
Cassandra xingou por baixo da respiração. — Então é isso, né? Chegamos.
Pedro a abraçou de lado, depositando um beijo no topo de sua cabeça. — Querida, por favor, assim você me deixa ansioso.
O grupo compartilhou um breve sorriso cúmplice, o foco voltando rapidamente para o portão que se abria. Acompanharam os soldados em silêncio até uma enorme tenda, sendo informados que iriam passar por uma triagem e descontaminação antes de entrar no enorme acampamento de resgate.
Cassandra foi a primeira, passando por toda avaliação sem problemas e sendo conduzida para limpar os pertences. Logo foi a vez de Pedro, e ao passo que o observava ser aceito, Aruna sentia uma onda de ansiedade tomar conta. Notando as mãos trêmulas da namorada, Marisol a abraçou discretamente, depositando um beijo demorado na testa alheia e murmurando promessas de que tudo ficaria bem.
— Próximo!
Desfazendo o abraço, mas segurando firme uma das mãos de Aruna, Marisol tentou tranquilizar. — Vamos, é a nossa vez.
Aruna concordou com a cabeça, não sabia explicar a razão de tamanho nervosismo, algo parecia embrulhar o estômago e ela sentia uma necessidade de correr de volta para casa. Mas seguiu os passos da namorada, passando pelo processo da triagem ao mesmo tempo.
A primeira etapa era dar dados e responder algumas perguntas, algo que Aruna respondeu sem problemas enquanto ainda conseguia observar Marisol na mesa ao lado. Após receber um papel de identificação, foi conduzida para uma área com mais privacidade, onde a enfermeira pediu para que tirasse as roupas para ser examinada. Uma etapa de segurança, a enfermeira explicou, pois no início tiveram problemas mentindo sobre não estarem infectadas.
— Está bem, mas devo pedir para que não se assustem. Eu fazia as buscas por mantimentos nas áreas desoladas. — Aruna avisou, com um sorriso apreensivo. Começou tirando primeiro os sapatos e as meias, para que pudesse preparar as duas mulheres. — Minhas feridas são antigas e estão todas cicatrizadas.
Tirou então a calça que usava, pois sabia que tinha menos mordidas e feridas nas pernas. Escutou um arfar e um pequeno “ai meu deus” da enfermeira e médica quando finalmente tirou a camisa. Encarou apreensiva as duas mulheres, mas ambas foram profissionais, uma expressão intrigada nos rostos.
A médica foi a primeira a se aproximar, tocando o braço de Aruna e avaliando as feridas, murmurando em espanto. — Você é imune!
— Doutora, ela pode ser a solução para isso tudo! — a enfermeira concluiu, os olhos desviando das marcas de mordida e encarando Aruna no que parecia alívio. — Senhorita, você é um anjo milagroso!
Aruna sentiu o estômago embrulhar, aquela reação não era exatamente o que ela esperava e, se levasse em consideração os filmes que ela assistiu antes do caos, aquilo não era um bom sinal.
— Senhorita Aruna, irei pedir para escoltar você para a recepção, assim podemos conversar com meus superiores. — a médica decidiu, indicando para que a jovem se vestisse de volta. — Não se preocupe, ok? Sei que é uma pressão repentina, mas você será bem tratada.
— Eu vim com mais três pessoas. Marisol, Cassandra e Pedro. — Aruna vestiu-se rapidamente, tentar manter a calma era uma tarefa difícil. — Por favor, não quero me separar deles.
A médica parou na entrada do cubículo e ofereceu um sorriso. — Isso pode ser facilmente solucionado, vou deixar avisado também.
Dito isso, a médica sumiu pela cortina do cubículo. A enfermeira ofereceu um copo com água enquanto esperavam, deixando Aruna sentada numa das cadeiras para que pudesse descansar e se acalmar. Não demorou muito para a médica retornar com um soldado, o apresentou como guia e prometeu que tudo daria certo. Apesar do carinho da médica e da enfermeira, Aruna não gostou da forma que o soldado estava a encarando.
Engolindo em seco, Aruna seguiu em silêncio o soldado que estava conduzindo-a pelo corredor entre as tendas. Mas, depois de olhar ao redor e não encontrar Marisol esperando por ela, resolveu questionar a energia estranha da situação. — Huh, e as três pessoas que vieram comigo? A médica me prometeu que eles iriam comigo.
Por um instante pensou que o soldado iria ignorá-la, mas, antes que pudesse ouvir a resposta, mais três soldados apareceram de uma das tendas, todos armados e com expressões fechadas. O soldado que a conduzia parou bruscamente e quando Aruna percebeu que eles não tinham boas intenções, já era tarde demais.
Os gritos de Aruna quebraram a falsa calmaria do local. Os soldados a arrastavam de maneira agressiva, fazendo o desespero tomar conta dela. Tentou se desvencilhar, debatendo nas mãos que a prendiam, mas a ação apenas resultou em um golpe na maçã do rosto.
Com o impacto, Aruna fitou o chão e sentiu o corpo travar ao perceber o rastro de sangue, manchas de sapatos em vermelho além da sujeira que indicava uma tragédia com inocentes ali. Compreendendo que o destino foi sentenciado, Aruna gritou para os soldados e qualquer testemunha da situação. — Droga! Ao menos deixe eu me despedir da minha namorada e dos meus amigos!
— Aruna! — Marisol gritou, empurrando a equipe médica e os soldados que assistiam a jovem ser puxada pelos braços na direção onde o chão estava manchado de vermelho. — Não! Por favor, ela é imune! Por favor!
Ao perceber que Marisol tentava se aproximar, Aruna passou a se debater com mais convicção. A vontade de tentar viver, ou ao menos proteger a namorada, a fazendo desafiar os soldados. — Eu exijo falar com o superior de vocês!
— Estamos seguindo o protocolo. Cobaias não precisam ser entregues quentes. — um dos soldados grunhiu impaciente, um sorriso lascivo no rosto. — Manda sua namoradinha ficar quieta senão sobra pra ela também.
Ao perceber que não iriam mudar de ideia, Marisol se desviou dos soldados que tentavam segurá-la e deu impulso para chutar um dos homens que prendiam Aruna, que finalmente com uma mão livre conseguiu socar o outro soldado. Desnorteados com a coragem das duas jovens de revidar o tratamento agressivo apesar da ameaça, os soldados sacaram as armas.
Por um momento ninguém se mexeu, até que Marisol aproveitou para se lançar nos braços de Aruna e encarar os olhos cheios de lágrimas que eram reflexos dos dela. Apesar da esperança de um futuro diferente, elas sabiam que ali era o fim.
Tudo aconteceu rápido demais, sem explicações ou conversa. E a última declaração de amor que saiu dos lábios de Aruna foram abafadas pelo barulho das armas sendo disparadas.
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