#CONTO: HOTEL AMARE
Sinopse: Cassandra decide procurar ajuda em um hotel após se perder durante a viagem. Surpreendida pelo excêntrico lugar e seus hóspedes, um fato passa despercebido: por que ela ainda não foi embora?
Correndo contra o tempo. A pressão para alcançar todas as expectativas impostas pela sociedade: emprego estável em um cargo de poder, ter casa e carro no seu nome, casamento e filhos. Se possível, tudo antes dos 30. Mesmo não querendo nada disso, Cassandra se esforçava além de seus limites. O orgulho da família, era formada em direito e conseguiu um cargo bom numa empresa renomada. Morava num apartamento que levaria dez anos pagando, tinha o próprio carro de luxo por cortesia da empresa. Ela tinha o talento, mas sabia que sua aparência abria muitas portas.
Contudo, para manter aquele estilo de vida, exigia poucas horas de sono, uma quantidade absurda de café e álcool, além das dores de cabeça de ter que lidar com clientes teimosos e, adicionado recentemente na lista de tarefas, viajar para atender clientes vips. Não demorou muito para a exaustão alcançá-la, mas como uma verdadeira workaholic, Cassandra ignorou os sinais e focou na tarefa de conseguir fechar um acordo importante com outra empresa.
Era só mais um jantar e o contrato seria assinado, apenas mais uma noite e então férias. Bem, ao menos era o plano inicial. Por alguma ironia do destino, o jantar foi remarcado para um local distante, na promessa de uma experiência exótica e relaxante no meio da semana. Cassandra decidiu ir dirigindo, mas o celular ficou fora de área e não conseguiu mais acessar o mapa. Estava cansada de dirigir por quase um dia inteiro, mas continuou seguindo a estrada na esperança de encontrar um posto ou qualquer outro estabelecimento para pedir informação. Já estava anoitecendo quando finalmente avistou ao longe o que parecia ser uma enorme mansão.
Ao se aproximar, de início, pensou que seus olhos cansados estavam pregando uma peça, mas a mansão era rosa e tinha uma variedade exagerada de detalhes em coração. Uma placa logo na entrada informava: Hotel Amare, boas-vindas ao paraíso! Sem ter outra opção, Cassandra parou ali mesmo.
O estacionamento tinha somente dois carros estacionados, mas decidiu parar o carro próximo da saída. Para a surpresa de Cassandra, diferente do jardim que parecia sair de uma fantasia, ao passar pela enorme porta vermelha, a parte interna do hotel era um pouco mais delicada e neutra.
Ao ver que não tinha ninguém na recepção, tocou a campainha. Enquanto esperava, acabou se distraindo ao perceber os corações discretos que estavam pela decoração interna, até que uma voz a alguns passos de distância a assustou.
— Boa Noite! Oh, senhorita, está tudo bem?
Virando para encarar a dona da voz, se deparou com uma jovem vestindo uma calça cheia de corações e uma camisa de botão suja de vinho. Preferindo não comentar nada, Cassandra deu de ombros.
— Eu tô perdida, vocês por acaso tem um mapa? Meu celular ficou fora de área.
Com um sorriso enorme, a jovem se aproximou e deu um leve tapinha no ombro de Cassandra. — Excelente! Você tá no lugar certo, venha. Vamos até o meu escritório, lá tem um mapa pendurado de toda a região.
Meio confusa, Cassandra seguiu os passos rápidos da outra. — Você é a gerente noturna?
— Não, — a jovem disse em meio um risinho, abrindo uma porta vermelha e indicando para que Cassandra entrasse. — Eu sou a dona do Amare, me chamo Ângela. Ah, aqui o mapa!
Analisando o enorme mapa, Cassandra franziu o cenho ao não encontrar o que procurava. Será que anotou errado o endereço?
— Viagem de negócios ou lazer? — Ângela perguntou curiosa, olhos atentos no que a outra fazia.
— Negócios, mas depois irei tirar férias. — Cassandra deu de ombros novamente, desistindo de tentar lembrar o endereço.
— Já tá tarde, o que acha de descansar? Dormir sempre ajuda a compreender melhor as coisas que não conseguimos enxergar à primeira vista.
Não tinha como continuar viagem sem saber a direção, e Cassandra estava mesmo cansada. Como o jantar era o fim de semana todo no local marcado, se conseguisse descobrir o endereço assim que acordasse, poderia pegar a estrada depois do café da manhã.
— Ok, vou querer um quarto então.
Cassandra foi rapidamente pegar suas coisas na mala do carro e, ao voltar, encontrou Ângela cantarolando na recepção.
— Aqui, quarto 13, fica voltado para o jardim principal. Excelente vista pro horizonte. — Ângela informou, entregando a chave. — Espero que tenha um bom descanso, Cassandra!
Distraída com a informação sobre a vista para o jardim e o horizonte que dá para a praia, Cassandra desejou boa noite e seguiu em direção ao quarto. Ela só perceberia dias depois que nunca tinha dado o seu nome, nem apresentado a sua carteira de identidade para fazer o cadastro.
A propriedade do hotel Amare era enorme, cercada por um esplêndido jardim em todos os quatro lados, com direito a uma piscina longa que se fundia ao jardim de forma harmoniosa. Era um pequeno paraíso no meio do nada, com somente uma estrada interligando com a civilização. E se a área externa era deslumbrante, o quarto era também um pequeno paraíso, com detalhes de coração – mantendo a temática do hotel – por todo o lugar.
Era aconchegante, o foco claramente em fazer o hóspede relaxar e esquecer de vez o mundo fora daquele terreno. E foi isso que Cassandra acabou fazendo, dormindo toda a exaustão do corpo e da mente, quando finalmente acordou o dia já estava sumindo com o sol no horizonte outra vez.
— Oras, se não é o quarto 13! — um rapaz alto e musculoso exclamou assim que viu Cassandra se aproximando da área de bufê, chamando atenção das outras pessoas com quem dividia a mesa.
Ainda desnorteada de sono, Cassandra sorriu educadamente, — Olá, huh, me chamo Cassandra.
— Nicolas! — o rapaz sorriu largo, apontando então para a mulher ao seu lado. — Fernanda, minha esposa.
— Peço desculpas pelo comportamento labrador de meu marido, — Fernanda disse em forma de cumprimento, — Nicolas nunca saiu da fase da lua de mel.
— Ela fala desse jeito, mas ambos são insuportáveis. — o jovem sentado ao lado de Fernanda retrucou, rindo baixinho ao ver a expressão indignada da mulher. — Sou Victor, e o bonitão dormindo ali é Pedro.
Todos então encararam o rapaz que estava com a metade do corpo apoiado na mesa, o rosto escondido pelos braços, dormindo de forma pesada e alheio à conversa. Sorrindo, Cassandra aceitou a cadeira que Nicolas puxou e pegou um pouco de café ao perceber que ainda estava quente.
— Vocês estão aqui faz muito tempo?
— Já se tornou nossa casa praticamente. — Fernanda respondeu, após trocar olhares com Nicolas e Victor. — Depois de tudo, decidimos que aqui era o melhor lugar para tirar umas férias prolongadas.
Cassandra franziu o cenho, confusa com a resposta, mas foi distraída quando Victor acrescentou: — Chegamos ao mesmo tempo, acredita? Eles num carro e nós em outro, norte e sul, indo para a mesma direção.
— Oh, essa é uma coincidência interessante.
Soltando um riso fraco, Nicolas deu de ombros. — Mais para o destino.
Sentada num dos bancos que ficavam de frente para o pequeno lago artificial, Cassandra alimentava os peixes e patos com a ração disponível. A manhã chegou de forma tranquila, trazendo um sol tímido em meio às nuvens, permitindo aproveitar melhor a brisa que vinha do mar. Cassandra pela primeira vez não tinha nada em sua mente, livre de qualquer pensamento e urgência, apenas a calmaria de estar ali.
— Vi que você já fez amizade com os hóspedes dos quartos 7 e 8. — a voz de Ângela, soou alguns passos ao longe, antes dela finalmente aparecer ao lado de Cassandra. As duas se encararam por um momento, por fim, continuou: — Como de costume, o hotel irá realizar um brunch de celebração. Não servimos necessariamente almoço, já que ao longo dos anos percebemos que os hóspedes tendem a esquecer horários e preferem apenas desfrutar a experiência.
Cassandra piscou algumas vezes, encarando Ângela em silêncio enquanto processava a informação, mas logo franziu o cenho. — Okay?
Ao perceber que a outra ficou confusa, Ângela sorriu. — O brunch será servido na adorável estufa, é do lado oposto. Você está convidada.
Sem esperar por uma resposta, Ângela seguiu seu caminho, voltando para dentro do hotel e deixando Cassandra sozinha mais uma vez. A advogada franziu o cenho, encarando em silêncio por onde Ângela desaparecera e, então, suspirou arrastado.
Ângela era um total mistério. Excêntrica na mesma intensidade do hotel Amare, mas não na mesma frequência - apesar de certos dias a jovem se vestir como se fizesse parte da decoração cheia de rosa, vermelho e corações -, quando acreditava tê-la compreendido, na verdade, estava longe disso.
Adicionado à enorme lista de excentricidades, o brunch foi um evento totalmente diferente do que Cassandra estava habituada. Os lugares que estava acostumada a frequentar sempre parecia forçar uma aparência de sofisticação exagerada, um preço caro de acordo com o status e a área que era forçada a interagir devido ao trabalho. Porém, ali no hotel parecia muito mais uma reunião entre amigos de longa data, do que realmente um evento social entre hóspedes.
Dividindo a mesa com Nicolas, Fernanda e Victor, Cassandra se divertiu assistindo Pedro ser a animação do brunch cantando diversas músicas e narrando histórias sobre pessoas que se tornaram hóspedes do hotel. Era meio estranho pensar que, se os cálculos de Cassandra estivessem certos, não apenas os dois casais, mas todos os hóspedes estavam ali no hotel por um longo tempo… Um tempo um tanto indeterminado. Mas o raciocínio foi interrompido quando Ângela apareceu acompanhada de cinco novos hóspedes, que foram prontamente recebidos ao evento de forma calorosa.
Um hotel que parecia mais uma enorme casa de férias, Cassandra pensou, rindo sozinha enquanto observava os outros decidindo que era hora de um jogo de adivinha. E se Cassandra prestasse um pouco mais de atenção, teria percebido que já era o terceiro mês hospedada ali.
O sol sumiu lentamente no horizonte, deixando a estrada sem fim mergulhada na escuridão da noite, a lua sendo uma minúscula guia apesar de sua imensidão. Quilômetros e milhas, Cassandra estava completamente sozinha. Exausta. Confusa. Sem saber de onde tinha saído e qual era o destino final, vagando sem rumo e seguindo a estrada sem fim. Perdida. Não existia nenhuma outra rota, ao menos não uma que pudesse ser vista. Não existia sequer um retorno ou saída de emergência, somente a reta seguindo em direção ao horizonte.
Sem fim.
Até que o chão e o céu se fundiram num solavanco, como um vórtice no meio da escuridão para logo depois explodir em luz, tão brilhante e forte, que por um instante Cassandra pensou ter perdido a visão. Tudo parecia doer, ao mesmo tempo que nada parecia estar no lugar que deveria, como se fizesse parte do vácuo infinito. Com uma pressão crescente no peito, o ar escapou-lhe por completo, fazendo o desespero tomar conta de seu corpo.
Sem conseguir se orientar, compreender o que estava acontecendo, Cassandra tentou em vão se mexer. Porém, os sentidos lhe faltavam e ela já não sabia mais onde exatamente estava. Nada. Absolutamente nada. O vazio que vinha de lugar algum e ia para lugar nenhum. Sem chão. Sem céu. Então num estalo tudo parecia voltar, como uma folha branca sendo preenchida numa velocidade descontrolada, Cassandra sentiu ser esmagada.
Cassandra se debateu, braços e pernas movendo-se de forma desorientada, tentando escapar do desconforto. Quando abriu os olhos, estava deitada na enorme cama do quarto de hotel. Um pesadelo, a advogada respirou fundo em alívio. Somente um terrível e confuso pesadelo, nada mais e nada menos, repetia para si mesma. Só que não parecia um pesadelo. Com as mãos trêmulas segurando o rosto, Cassandra não podia mais fugir da verdade: algo de muito ruim havia acontecido.
Apesar de ser madrugada, trocou de roupa e saiu do quarto sem pensar duas vezes, o coração martelando no peito parecia guiá-la em uma única direção: as enormes portas vermelhas da entrada do hotel. Andou com passos apressados, passando pelos corredores e saguão vazio, até finalmente tocar na maçaneta. Abriu a porta com certa força - e desespero - e observou o caminho cortando o pequeno jardim da entrada que sumia na escuridão da noite.
Cassandra pegou impulso para correr, os pés tocando o cimento do caminho por um breve instante até que sentiu um forte calafrio percorrer o corpo, olhou ao seu redor e se encontrou ainda parada na porta vermelha. Franziu o cenho, confusa se havia ou não pisado do lado de fora, tamanha ansiedade.
Respirando fundo, Cassandra deu dois passos para frente, parando no enorme tapete de coração com a escrita ‘boas-vindas!’ e então correu, mas não conseguiu chegar muito longe. Sentindo o corpo ser puxado para trás numa força invisível, Cassandra, de repente, se encontrou novamente parada na porta vermelha.
Com o coração martelando no peito, Cassandra ousou correr para fora mais uma vez. O som dos sapatos tocando no cimento por uns breves segundos antes de sentir um empurrão e cair no chão. Cassandra ofegou assustada, encarando as enormes portas vermelhas abertas e o lado de fora. O medo atingiu-lhe em cheio ao constatar que estava presa ali, mas, na mesma velocidade que veio, a sensação foi embora e deixou somente o nada.
— Cassandra, vejo que está finalmente acordada.
A voz de Ângela quebrou a quietude sombria do momento, surgindo como se tivesse materializado por mágica ao lado de Cassandra. Desviando os olhos das portas, Cassandra observou Ângela que, depois de tanto tempo, mais uma vez trajava a calça e sobretudo cheios de corações, as mesmas peças de roupa de quando a recebeu no hotel.
Sorrindo, Ângela esticou a mão oferecendo ajuda para levantá-la, porém Cassandra preferiu levantar sozinha. As duas se encararam por alguns minutos, até que Cassandra quebrou o silêncio.
— Eu estou morta.
Uma constatação. Sem conversa fiada, sem gentilezas. Cassandra sentiu a força do corpo esvair ao finalmente dizer as palavras em voz alta. Não existia um mísero grão de raiva ou medo pelo fato. Apesar da apreensão, Cassandra se sentiu conformada. Agora tudo fazia sentido: o hotel, os hóspedes que faziam dali uma morada, o tempo que passava tal qual um sonho, a dona do hotel.
— Seja bem-vinda ao paraíso, Cassandra. — Ângela disse, ainda com um sorriso no rosto, abrindo os braços levemente como se estivesse apresentando pela primeira vez o hotel.
Paraíso… Um arrepio desconfortante percorreu o corpo de Cassandra. A situação toda era um tanto bizarra, ao mesmo tempo que acreditava ser real, tudo aquilo parecia ser um sonho. Porém, era impossível continuar negando. Cassandra estava morta e, sem perceber, sentenciou o próprio destino ao decidir entrar em um hotel que não tinha porta de saída.
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