#CONTO: FERIDA ABERTA
Sinopse: Sem conseguir esquecer o seu primeiro caso na equipe de homicídios, uma detetive vive atormentada pelo passado.
aviso: este conto contém descrição de violência e sangue.
Mais uma vez, Aruna se encontrava sentada naquela maldita poltrona daquele consultório, que parecia mais uma sala abandonada escolhida especialmente para que ela sofresse toda a punição que os superiores achassem necessária para o momento. Quanto tempo mais ela seria obrigada a aturar todos daquele departamento tratando-a como se fosse uma bomba-relógio com defeito? Já haviam se passado longos malditos anos, mas quem estava contando, certo?
Aruna riu soprado e sem resquício algum de humor aparente, o que não escapou aos olhos atentos do psiquiatra que ainda a avaliava em silêncio. Ela já havia deixado claro que era capaz lidar muito bem com os próprios demônios, de fato, Aruna havia até mesmo demonstrado que era capaz de não explodir - por completo - e ferir alguém durante o acontecimento. Mesmo que o exemplo tenha sido um lixo de promotor tentando comprometer uma evidência e estragar um caso tão importante para favorecer um criminoso.
Ah, o bastardo mereceu o olho roxo e nariz quebrado, além das palavras que Aruna grunhiu em ameaça ao pegá-lo no ato da tentativa desesperada… Certo, talvez esse não tenha sido o melhor comportamento dela nos últimos meses, porém, deixá-la presa ali naquele cubículo que era uma ridícula imitação barata de um consultório por mais de quatro horas, além de ser um desperdício de dinheiro público, era um enorme desperdício de horas que ela poderia estar trabalhando. Poderia estar lá fora caçando monstros que se escondiam na forma de seres humanos normais.
Foi com esse pensamento que Aruna deixou um longo suspiro escapar ao mesmo tempo que permitia os músculos tensos do corpo relaxar contra as almofadas gastas da poltrona. Do que adiantava ser a detetive mais nova do departamento se ainda não possuía a autoridade necessária para que pudesse mandar quem fosse ir para o caralho e deixar ela trabalhar em paz?
Os olhos foram em direção do relógio de ponteiro na parede oposta, decidindo focar no barulho ritmado do objeto e então controlar a respiração de acordo. Talvez esse truque fora a única coisa que Aruna havia realmente aprendido em todas as sessões, mas era algo que havia se tornado um pequeno hábito quando ela tentava acalmar os pensamentos impacientes.
— Como estão as coisas com Marisol? — O psiquiatra murmurou sem tirar os olhos das anotações que fazia, como se não precisasse erguer o rosto para ver a reação dela, mas Aruna sabia que estava sendo observada.
Isso a irritava profundamente.
— Não estão. — Aruna disse entre dentes, irritada pela ex-namorada ser mencionada, sabendo que o homem apenas queria uma reação, mas algo nele a fez continuar falando, a dar uma explicação, e isso aumentava ainda mais a frustração de estar ali. — Ela recebeu uma proposta fora do país, passará uns dois anos fora... Nós terminamos.
— Nós? — o psiquiatra parou de escrever, erguendo o olhar, curioso por um instante.
— Eu terminei. Não há motivos para um relacionamento à distância assim. Foda-se. — Aruna encerrou o assunto de forma agressiva, mas o homem não fez comentários sobre, voltando a anotar o quer que fosse naquele caderno estúpido.
Como se não bastasse todo o estresse que ela tinha que aturar ali, ainda era forçada a lembrar que perdeu a única pessoa que amou. Após pedir baixa na polícia, Marisol investiu na carreira particular, aceitando um cargo numa importante empresa multinacional. Marisol não queria terminar inicialmente, mas com Aruna se auto sabotando como sempre costumava fazer… Depois de tudo que haviam passado juntas, era um gosto amargo, mas Pedro compreendia e desejava que Marisol fosse feliz.
E que não voltasse mais.
— O aniversário foi há quatro dias, certo? — a voz melodiosa do psiquiatra quebrou o silêncio novamente, atraindo a atenção de Aruna o suficiente para a mesma erguer uma das sobrancelhas na direção do outro. — Oh, você não gosta do termo aniversário?
A detetive bufou incrédula, desviando o olhar de volta para o relógio por um breve minuto, escolhendo bem as palavras que iria proferir, antes de encará-lo diretamente nos olhos. — E há algo para ser realmente comemorado?
— Você está viva. — ele constatou simples, mas rapidamente ergueu a mão destra ao notá-la respirar fundo e abrir os lábios para retrucar. — Marisol está viva. E a jovem menina está viva também. Vocês a salvaram, lembre-se disso.
05 de fevereiro de 2018
Era apenas um teste, mas ao mesmo tempo não podia negar que era um privilégio que ninguém conquistava assim tão rápido. Estava ali há um mês, fazendo o melhor que podia dentro de sua limitada permissão de iniciante, no entanto, de alguma forma havia se destacado. O caso era de extrema importância e, por um milagre, estava longe dos holofotes da mídia.
Ninguém, além dos envolvidos, estava ciente da monstruosidade que estava solta causando caos e infelicidade na vida de onze famílias. Foi um baque terrível ter que lidar com os parentes das onze crianças, ter que presenciar o patologista chefe explicar o que aconteceu com cada vítima. Mas nada superava a experiência de ter a certeza do quanto foi sofrido e cruel a interrupção daquelas vidas que tinham um caminho tão longo pela frente.
A investigação estava sendo árdua, a 13ª equipe não estava sequer fazendo turnos. Era possível notar a sincronia dos investigadores em coletar e analisar as evidências além da cooperação dos policiais que foram cuidadosamente selecionados. Todos os integrantes estavam focados e ansiosos para fazer justiça, porém o relógio pareceu mover ainda mais rápido quando foi descoberto o desaparecimento de uma menina de 13 anos. Não era coincidência, o horário e o ambiente do sequestro eram com o mesmo modus operandi.
Aruna mergulhou de vez no caso, passando três dias sem dormir para que pudesse analisar todas as autópsias e evidências novamente ao lado de Marisol. Unhas sujas de lama, cortes superficiais nos joelhos e antepernas, queimaduras de cigarro pelo dorso, os olhos inexistentes… Após sentir o estômago embrulhar diversas vezes, algo na mente de Aruna a fez puxar mais uma vez o enorme mapa que demarcava os locais onde foram encontrados os corpos. Não deveriam olhar por círculos, muito menos por quadrados. Os investigadores chefes estavam procurando nas delimitações erradas.
— Aruna, precisamos avisar o chefe! — Marisol resmungou aflita, anotando a localização no gps do celular e indo em direção à porta da sala, sabendo que a outra seguiria seus passos.
— Vá pro carro, já estarei lá. — Aruna respondeu, uma certa urgência na voz.
Elas estavam correndo contra o tempo.
— Você tem certeza dessas coordenadas, Aruna? — José, o chefe da equipe, encarou a jovem que possuía a aparência mais cansada de todos na equipe. Sabia que ela estava ultrapassando os limites de novata - mesmo que acompanhada de uma veterena como Marisol, mas também não era estúpido para negar evidências.
— Sim, temos que olhar nessa área. É isolada por um bosque, mas há uma casa abandonada registrada no sistema, — Aruna resmungou energética, as mãos moviam-se no ar com intensidade. — e pelo cálculo dá 5 horas de distância de cada ponto.
— Eu vou avisar o restante da equipe, prepare suas coisas. Eu quero você em campo com o patologista chefe, — o homem ordenou, distraindo-se ao girar nos calcanhares para pegar o celular que estava na mesa. Quando virou novamente, Aruna já havia desaparecido pelo corredor.
⠀
⠀
Como imaginaram, havia apenas um caminho de terra que interligava a estrada com a velha casa de madeira. A tarde já estava chegando ao fim e o céu começava a escurecer, então, para não atrair atenção para a presença delas, optaram em deixar o carro no acostamento da estrada e seguir o restante do caminho a pé.
A cada passo que davam, Aruna sentia o coração zumbir em seu ouvido, os anos no instituto pareciam inúteis agora que estava em campo e, infelizmente, sentia um nó se formar no estômago. Marisol não parecia muito diferente, a expressão mais sombria, o lábio vermelho de tanto morder - uma mania de quando estava ansiosa.
Após alguns minutos, conseguiram alcançar o local, a casa parecia digna dos filmes de horror que elas costumavam assistir nas noites de folga. Era possível notar que, apesar da aparência de abandonada, as luzes de alguns cômodos estavam acesas. Numa das janelas, um homem que aparentava estar no máximo com cinquenta anos se movimentava pela cozinha, seria uma cena comum para as poucas horas antes do jantar, se não fosse a camisa branca manchada de vermelho.
Passando por entre as árvores até dar a volta pela lateral do terreno, as duas correram na direção da passagem para o porão, Aruna escorregando de leve até estar agachada o suficiente para manter sua presença incógnita. Enquanto que Marisol tentava manter a atenção voltada para a direção da entrada da casa, com o revólver em punho.
Aruna xingou por baixo da respiração quando finalmente olhou pela janela e os olhos focalizaram no delicado corpo caído no chão sujo, podia notar que os três dias haviam sido difíceis para a criança.
Olhando sobre o ombro, Aruna procurou pela escuridão da noite qualquer sinal de que sua equipe estava vindo, mas logo notou Marisol menear a cabeça e sussurrar: “eu te dou cobertura” . Não podiam ficar ali esperando, o tempo estava cada vez mais curto.
Então, após verificar que o homem ainda estava na cozinha, não hesitou em entrar na casa, sem muita dificuldade em abrir a velha janela do porão e deslizando da forma mais graciosa possível até os pés tocarem no concreto. Com a adrenalina alta, não foi difícil soltar a menina de 13 anos das correntes e rapidamente conferiu o corpo da criança em busca de qualquer risco urgente.
Apesar de seu estado, ela rapidamente entendeu o que estava acontecendo. Liberdade, a criança sussurrou fraco em agradecimento, após repetir as curtas instruções de Aruna para que se escondesse no bosque e seguisse a estrada de terra até chegar a via principal. Aruna retirou o casaco e vestiu o pequeno corpo, erguendo a criança então até a janela, Marisol ajudando-a pelo outro lado para que saísse sem dificuldade.
Estavam tão focadas em libertar a criança que não notaram o vulto se aproximar atrás de Aruna. Esqueceram que no mundo real não existia sorte de principiante quando se está lidando com um assassino em série.
⠀
⠀
O grito em agonia ecoou pelo ambiente úmido enquanto o corpo convulsionava violentamente. Os pés remexiam-se desnorteados contra o solo de concreto frio em uma tentativa de conseguir equilíbrio, ao mesmo tempo que os dígitos dormentes escorregavam lentamente da corrente que o prendia no teto. Sentia as feridas se aprofundando nos pulsos que estavam amarrados com arame farpado, mas Aruna não sabia mais ao certo qual ferida poderia ser fatal.
Os olhos então focalizaram o teto sujo, a respiração entrecortada como se estivesse aos poucos se afogando. A situação era ruim, o homem estava descontando toda a sua frustração e raiva.
A cabeça pendeu para trás ao sentir o metal afundando em sua carne abaixo do lado esquerdo do peito, mas não conseguiu gritar, sua cabeça girou para o lado e logo passou a tossir sangue. Queria morrer. Mas não iria implorar para o fim de todo o sofrimento. Não daria ainda mais prazer para o assassino.
Marisol encontrava-se desacordada, correntes prendendo pulsos e tornozelos ao chão. A última vez que Aruna conseguiu olhar em direção da namorada, havia contado ao menos sete feridas pelas pernas e peito, nenhum parecia ser muito profundo, mas ao mesmo tempo que era um alívio não ter uma enorme poça de sangue, poderia ter então alguma hemorragia interna.
Aruna xingou mentalmente, enquanto o homem estivesse focado emtorturá-la, Marisol poderia sobreviver até os reforços chegarem.
O homem começou a falar alguma coisa, porém não conseguia distinguir as palavras e só escutava ruídos abafados. Logo seu rosto foi erguido, o assassino puxando-a bruscamente pelo cabelo ao ponto de arrancar alguns fios. O primeiro golpe foi recebido com um forte estalo, parando apenas quando o último soco resultou num olho inchado e sangrando ao ponto de incapacitar a jovem policial de enxergar, e então as mãos trêmulas foram soltas do arame, permitindo que Aruna caísse sem jeito contra o chão manchado com o seu próprio sangue.
— Cachorra maldita, irá sofrer o dobro do que aquela pequena demônia iria sofrer, — o homem vociferou com escárnio, chutando sem dó no local exato onde havia cortado-a na barriga, fazendo Aruna perder o restante do fôlego e fitar mais uma vez o teto com os olhos desfocados devido toda a dor infligida. — Você se importa com aquela gracinha desacordada, não é? A peguei antes que conseguisse fazer algo.
Com um sorriso em cólera, o homem trouxe a faca até o rosto da jovem em ameaça antes de, num movimento súbito, fincar a arma na coxa e fazendo Aruna urrar de dor. — Ela desmaiou logo no início, sabia? Você é mais divertida de brincar. Irei te fazer implorar por misericórdia.
Aruna tentava controlar o que restava da força para respirar ao mesmo tempo que recobrava o movimento das mãos, o coração batia cada vez mais forte e sabia que não era um bom sinal, iria perder ainda mais sangue daquele jeito. Maldita adrenalina. Com a mão destra trêmula, esperou que o homem se distraísse dando as costas para remover a faca da coxa e esconder por baixo do pulso.
Por um momento fechou o olho ainda bom, sentindo o gosto salgado das lágrimas que escorriam silenciosas quando compreendeu a realidade final daquela situação. Era a sua única chance para ao menos salvar Marisol.
O homem então se aproximou, puxando Aruna pelo cabelo novamente, ao ponto de erguer seu tronco do chão, arrastando-a para mais próximo de onde Marisol estava presa.
Estava confiante demais e Aruna aproveitou-se disso. Com um movimento preciso, cravou a faca no lado esquerdo do pescoço do homem e puxou, rasgando a pele o mais fundo que conseguia até a jugular. Jogando o corpo para trás, o homem gritou e tentou escapar do ataque, mas Aruna aproveitou-se do impulso para arrancar a faca.
Aruna observou em silêncio o resquício de vida se esvair do assassino, querendo ter certeza que havia acabado. Então, com o resto da força que tinha, usou os braços para encurtar a distância e ir até Marisol. Não conseguia abraçá-la como queria, mas apoiou a cabeça no ombro alheio, sentindo o corpo implorar por descanso.
— Está tudo bem agora, por favor, aguente firme! — Aruna murmurou sem fôlego, não sabia se era mais para si mesma ou para a namorada desacordada.
Ao longe, começou ouvir o som das sirenes e não demorou muito para reconhecer os passos pesados da polícia no assoalho acima de sua cabeça. Minutos depois José apareceu correndo em seu campo de visão, o rosto do mais velho perdendo a cor ao encarar toda a cena.
Aruna não conseguiu entender o que José disse, observando com a visão turva o chefe da equipe gesticular e apontar ao redor, provavelmente dando ordens. Em meio a todo o caos, Aruna sentiu um alívio ao concluir que o caso estava encerrado.
— Finalmente. — Aruna suspirou fraco, sucumbindo por fim à própria escuridão.
Piscando os olhos várias vezes e respirando fundo, Aruna focou na sensação do material dos braços da poltrona em suas mãos, no barulho do maldito relógio na parede. Tentou se desconectar da memória que sempre a puxava para o passado de forma repentina e cruel, dificultando por completo de controlar os gatilhos com antecedência.
Fitou então o psiquiatra, que continuava a escrever em seu caderno, agindo como se não tivesse notado que a detetive foi pega em um terrível flashback.
— Eu não sou uma heroína. — Aruna chiou, respondendo finalmente o comentário, os lábios formando uma linha fina em uma nova onda de irritação.
— Nunca disse que era uma.
O silêncio mais uma vez tomou conta da sala, as palavras diretas e sem delicadeza alguma do homem haviam pego Aruna despreparada, mas, para a surpresa da própria policial, não havia atingido-a de forma negativa. Ela sequer conseguia lembrar a última vez que alguém havia falado daquela maneira, sem receios de que a bomba-relógio pudesse explodir. Ou será que o doutor esperava uma reação mais agressiva?
Aruna permitiu que um sorriso se formasse nos lábios, de forma sarcástica, mas ainda um sorriso, e logo uma risada soou por todo o consultório. Ela não era um heroína. Talvez uma detetive com um claro problema de ansiedade desde jovem e que agora carregava um maravilhoso trauma no bolso, mas… Ah, foda-se, ela não tinha mais ideia de como transformar toda aquela situação em uma piada.
— Será que um dia poderei ser classificada como um caso de esperança, Doutor? — a pergunta fora feita sem intenção de conquistar uma resposta, o tom carregado de sarcasmo enquanto Aruna inconscientemente passou a balançar a perna em um claro sinal de ansiedade.
— Talvez, — o psiquiatra respondeu após ponderar a questão, erguendo-se de onde estava e ignorando os olhos atentos da detetive, que rapidamente o imitou para rumar em direção à porta. — só tente não morder além do que você consegue mastigar.
Girando nos calcanhares para fitar o psiquiatra, Aruna ergueu a mão em direção à maçaneta, mas permaneceu parada onde estava. — Você está flertando comigo?
— Nossa sessão acaba por aqui, detetive. — o psiquiatra respondeu sem dar muita atenção, se afastando da saída e pegando os papéis na poltrona para levar de volta para a mesa. — Espero que você faça bom uso das horas a partir de agora.
A detetive não ofereceu nenhum comentário em resposta, balançando a cabeça negativamente enquanto fitava o relógio de pulso e, ao notar que já havia passado do horário de trabalho, decidiu apenas ir embora.
Mais um dia desperdiçado, por culpa da falta de controle e da merda do promotor, porém, no momento, ela apenas queria chegar logo no pequeno apartamento que havia alugado no centro da metrópole e beber um engradado de cerveja até finalmente conseguir dormir.
Beber para esquecer, beber o suficiente para entorpecer a mente e não ter nenhum pesadelo. Aruna queria ao menos por uma noite não reviver aquele dia aterrorizante.
ㅤ
Esse conto foi escrito em 2020, uma tentativa de fazer um thriller focando no drama de uma policial com aquela pitada de sangue e trauma, duas peças chaves para o gênero (e que foi muito divertido de se trabalhar).
você pode também me encontrar: instagram | vsco | tiktok | maratona | letterboxd